quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Doutores do que não vimos

"Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver."

Amyr Klink







Algo que muito me incomoda é o uso de jargões sem qualquer “checagem” como se diz no jargão jornalístico. Vejo e escuto muito por aí – como todos vocês – diversas críticas aos Estados Unidos e seu “way of life”. Geralmente me calo e apenas penso: “é uma pena você rejeitar sem nem mesmo conhecer, nunca vai saber como é bom viver naquele país onde tudo costuma funcionar, bem ao contrário daqui”. Confesso que ultimamente – talvez por depressão pós-visita àquela terra – toda essa balela tem me “ferido a alma” com mais intensidade. Principalmente quando feita por quem jamais colocou os pezinhos por lá pra dizer que não gosta.

De forma alguma estou defendendo a política internacional deles, de nenhuma maneira estou trazendo à tona o imperialismo e a vontade de subjugar o restante do mundo ou a pretensão (verídica em muitos casos) de se pensarem como melhores do mundo.

Mas é preciso dar a mão à palmatória: eles sabem valorizar e amar a própria terra como ninguém. E, em nome desse amor, souberam também construir uma nação que trata bem os seus cidadãos, no melhor modelo “dos filhos deste solo és mãe gentil”. Bom motivo para queremos aprender com eles.

Uma das críticas mais utilizadas pelos avessos à terra do tio Sam e que também mais me desperta indignação é a de que eles não sabem geografia. Então, vamos fazer um teste. Pense você qual é a localização exata no mapa-múndi da Tunísia? Se você souber que fica no norte da África já se destacou da maioria esmagadora dos brasileiros. Mereceria até uma medalha de honra ao mérito. Acha que não valeu porque é um país africano e muita gente se confunde? Ok, vamos tentar a Europa, então. Você saberia apontar a localização da Eslováquia ou da Eslovênia? E que tal San Marino, Moldávia, Alderney? Muito longe ainda?? Então vamos voltar ao nosso continente para mais uma tentativa: Podemos começar com Barbados, Monte Serrá, Guadalupe, Martinica. Acertou algum?

Pois bem: é muito fácil repetir críticas prontas. Difícil é construir um país cujos cidadãos sabem valorizar seus homens públicos, porque fizeram da história um motivo de orgulho; ainda mais difícil é criar uma nação onde se valoriza a educação para todos, onde o acesso à escola de qualidade é gratuito e realmente importa; ou ainda fornecer por meio dessa instituição aprendizado para a vida, com aulas de culinária, marcenaria, primeiros socorros, música, artes, teatro e não uma saturação de matérias das quais nos esquecemos tão logo nos vejamos livres delas.

É verdade que muitos americanos não sabem qual é a capital do Brasil e entendo que isso nos deixe particularmente revoltados, afinal somos um país “gigante por sua própria natureza”, com crescente importância econômica e política etc. etc. Mas tente sair às ruas e perguntar qual é a capital norte-americana??? Não se engane pensando que muitos de nós saberiam responder com precisão. Talvez, muitos dentre nosso sofrido povo nem saibam as capitais de todos os estados brasileiros. Basta lembrar dos inúmeros absurdos que recebemos até por e-mail com respostas inacreditáveis nas provas dos vestibulares de nossas universidades. Aliás, esses poucos que chegam até o nível superior já podem se considerar vitoriosos em nosso país.

Enfim, é bem verdade que muitas das críticas que são feitas ao modelo americano são verdadeiras. Mas, ao invés de se ter uma alma pequena é saudável querer expandir nossa experimentação sobre o mundo e a humanidade. Gostando ou não do que eles criaram, é bom poder estar lá pelo menos com o olhar de curiosidade. Gosto muito da visão do Amyr Klink sobre isso: prefiro acreditar que tudo o que sei sobre o mundo é muito pouco e, por isso, gosto de ir para descobrir. Me recuso a ser doutora naquilo que nunca experimentei. Posso estar, no mínimo, perdendo oportunidades valiosíssimas de aprender e, principalmente, de viver com intensidade.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

It´s a beautiful day!!





Às vésperas dessa histórica eleição norte-americana, o jornal O Globo publicou um interessante artigo sobre o que os jornais de todo o mundo trariam estampado em suas capas, caso Barack Obama fosse o vencedor. De forma muito pertinente, o sociólogo e doutor em geografia humana pela USP, Demétrio Magnoli, alertava para o esvaziamento do sentido do evento que a mídia encabeçaria ao destacar a eleição do primeiro presidente negro na história dos Estados Unidos.

“A manchete óbvia é, contudo, a manchete errada. Obama não será um ‘presidente negro’ e não seria nunca o ‘primeiro’, título que pertence a Bill Clinton, conferido-lhe pela escritora negra Toni Morrison”, dizia o artigo.

Enfatizando o fato de que Obama não se apresentou como um candidato negro, mas como um americano simplesmente, o autor afirma que o neto da – agora – saudosa Toot era um candidato pós-racial. Ele mesmo chegou a afirmar, causando até furor em muitos, que não acreditava “em política baseada na raça”.

Magnoli destaca, ainda, que Obama assume a identidade de mestiço: idéia tão comum por aqui, mas tão rara na terra do homem que tinha um sonho. Ele acrescenta: “Identidade é opção, não destino biológico. Obama poderia ter escolhido uma identidade afro-amerciana, selecionando os ancestrais relevantes para aquela opção. Mas decidiu selecionar todos os ancestrais e, fazendo-o, desafiou o mito da raça que recobre como uma cinta de aço a sociedade americana”.

Pois bem, acho excelente que existam cidadãos “pós-raciais” e talvez até por isso minha admiração por esse “mestiço assumido” ganhe mais vulto. Não podemos negar, no entanto, que as sociedades americana, brasileira, quiçá mundial, ainda não caminharam para esse estágio.

Uma das críticas que fazem os oponentes às políticas de ação afirmativa é exatamente o fato de não podermos usar a idéia de raças puras. Ficaria, pois, muito difícil definir quem “merece” ser alvo dos efeitos dessas ações. Especialmente num país como o Brasil, onde todos nós carregamos gotas múltiplas de sangue, como decidir quem deve ser beneficiado pelas políticas afirmativas?

Dúvida pertinente, afinal é mesmo preciso haver critérios claros para que qualquer política possa alcançar seus objetivos. Premissa básica para qualquer gestor público ou privado.

Quando olhamos, no entanto, números de desenvolvimento educacional, distribuição nas universidades, por estratos salariais, presença na política etc. não parece faltar objetividade. De forma bastante clara, eles nos trazem com precisão a parcela de seres humanos a quem estamos reservando – deliberadamente – faixas de privilégio.

Que clareza falta a um número assustador que revela que mais de 90% dos jovens negros estão fora da universidade, mesmo 120 anos depois da abolição? Que objetividade não está presente em um dado alarmante que aponta que dos cerca de 14 milhões de analfabetos no país, quase 9 milhões são pretos ou pardos?

Essa realidade não está posta apenas na frieza estatística. Também é bastante clara no calor ou na displicência impune dos nossos discursos diários. Exemplos não faltam, como o da empregada doméstica de uma conhecida que, ao me indicar uma colega para trabalhar em minha casa, fez a seguinte ressalva: “Só tem um ‘problema’, ela é negra”; ou o de dois moradores de um condomínio na Barra da Tijuca, no Rio, que em tom de brincadeira e entre risos “inocentes” comentavam que o pai de um deles não “corria o risco” de voltar da África, onde trabalhava havia alguns dias, mais preto porque ele tinha “sangue bom”; ou ainda o de um vigilante de um prédio comercial no centro do Rio, de cor mais preta do que branca, que dizia entusiasmado, empunhando a foto de Barack Obama estampada em um pedaço de jornal, não acreditar que ele seria eleito, afinal “um negro não poderia ser o presidente do país mais poderoso do mundo”. Explicações para tais fatos, que se repetem por todos os cantos? Talvez nem eles mesmos as tenham. Mas todos sabiam muito bem, assim como muitos de nós, onde estava o preconceito irracional e a quem ele se dirigia.

Tomara que um dia criemos uma sociedade “pos-racial”, onde nenhuma atitude, reação, política ou voto seja confirmado com base na cor da pele ou na origem racial de seus indivíduos. Enquanto isso, para nos proteger de nossa ignorância, é preciso agir positivamente em favor de quem sabemos muito bem como excluir. Caso contrário, continuaremos sendo uma sociedade que não se intimida, muitas vezes até sem se dar conta, em reservar vagas de privilégio apenas para alguns. E sem que nenhuma lei determine.